domingo, 24 de fevereiro de 2008

Artigo publicado no Jornal Resenha

DA PEQUENA ARTE GOVERNAMENTAL DE FAZER BESTEIRAS

“Seo” Fulano de Tal é um homem de bem. Paga seus impostos em dia e trabalha duro semana-a-semana. Viaja com a família regularmente para visitar seus velhos pais no interior. Dá uma parada no meio do caminho em uma churrascaria de beira-de-estrada onde almoça regando a carne a goles de cerveja. Como quando dirige não bebe, e se beber não dirige, seu filho mais velho é quem paga o pato bebendo guaraná.

A tal churrascaria vende razoável. Tem muitos fregueses tipo “Seo” Fulano de Tal. E outros, claro, em menor escala, que entornam o caldo bebendo e saem por aí rasgando pneu, achando que voar não é somente com os pássaros e ameaçando a vida dos outros. Para estes, o longo braço da lei, no Brasil, é curto e mole. Diferente, por exemplo, do que acontece nos EUA ou na Inglaterra, onde a cadeia é o destino mais certo e justo para quem não respeita os limites legais.

Pois bem, aqui no Brasil, a partir destes dias, nem “Seo” Fulano de Tal pode tomar suas cervejinhas com churrasco, nem a churrascaria de beira-de-estrada faturar vendendo bebida. Uma Medida Provisória dessas bem bestas proibiu a venda de bebida alcoólica às margens das rodovias brasileiras. Coisa de “cabeças-de-pudim governamentais”. Vocês sabem como é o “cabeça-de-pudim governamental”: mete os pés pela mão, faz uma besteira sem tamanho, e depois solta um discurso pomposo e oco para se dar razão.

Claro que essa tal Medida Provisória vai fazer o mesmo que aquela lei que proíbe o porte de armas: punir os inocentes sem incomodar os culpados. Explico. Quem quer beber na estrada não vai deixar de carregar consigo sua bebida ou entrar em qualquer cidadezinha fora das margens das rodovias para saciar sua sede e depois retomar a viagem. Quem quer assaltar não se importa com uma pena maior por porte de arma – ele sabe que quanto à relação custo-benefício, no Brasil o risco compensa.

Se para marginais, que são causas dessas decisões sem pé nem cabeça, pouco importa a lei, o mesmo não ocorre com os inocentes que por eles irão pagar. “Seo” Fulano de Tal não poderá mais beber sua inocente cervejinha na churrascaria de beira de estrada. E a churrascaria de beira de estrada, assim como motéis, hotéis, pousadas, conveniências, supermercados, mercados, mercearias e outros tantos, vão amargar um sólido prejuízo daqui pra frente. No Brasil é assim mesmo, como dizia mamãe: pelos pecadores pagam os inocentes.

Essa questão de pagarmos nós, os inocentes cumpridores da lei, pelos pecadores, sempre me intrigou desde que, muitos anos atrás, quando cheque ainda tinha valor, vi uma propaganda de um show de Roberto Carlos seguida do seguinte aviso: “não aceitamos cheque”. Por que não aceitam meu cheque se eu nunca passei um sem provisão de fundos? A resposta é tipicamente brasileira: por que dentre tantos que pagariam corretamente sua entrada alguns se encarregariam de soltar “borrachudos”. Resultado: pelos pecadores pagarão os inocentes.

Os cabeças-de-pudim governamentais sequer se preocupam com as filigranas de natureza jurídica que depõem contra leis como essas. Para eles são mesmo filigranas. Coisas como analisar o dano que se causa a inocentes para tentar alternativas melhores não faz parte do seu riscado. Lembra a história daquele padre dominicano a quem o general francês perguntou, na cruzada contra os cátaros albigenses, após a vitória, a quem deveria matar, ao que ele respondeu: “todos”; “Deus saberá quem são os seus”.

Por exemplo: a Medida Provisória depende de relevância e urgência para ser adotada. Não discutamos a relevância. Mas quanto a urgência? Somente agora, e já, esta questão se tornou relevante? Claro que não. Se não, então o Governo do Compadre Lula foi amplo, geral e irrestrito no desleixo com a vida humana. Por outra: e o tal princípio da igualdade, que segundos os entendidos significa tratar os iguais igualmente, e os desiguais desigualmente para fazer-se justiça? Devo, então, considerar que paus-d’água, bebedores legais, e estabelecimentos comerciais estão no mesmo patamar, são iguais, e puni-los todos? Ou considerar que são categorias desiguais e trata-los por esse prisma, preservando os inocentes e atingindo os culpados?

Os cabeças-de-pudim dirão que não se trata disso. E pontificarão: “o interesse coletivo deve preponderar sobre o particular”. Eu digo, com base na lógica do razoável: somente é assim quando não há uma outra forma que, respeitando as liberdades individuais, surta o mesmo efeito. Então convenhamos: é o caso de se aumentar radicalmente as penas contra os beberrões que dirigem. Que tal cadeia longa e multa violenta aplicadas em rito sumário, como nos EUA? Que tal cadeia longa e multa violenta para quem utilizar arma-de-fogo por outro motivo que não sua própria defesa?

Honório de Medeiros - Advogado, professor e ex-secretário do governo do estado

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